Leonel Coelho, Meu Avô

Leonel Coelho, Meu Avô

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«Um ano antes, no seu último aniversário, tinha-lhe escrito: “A maior parte das pessoas tem o azar de ser constantemente vítima de simpatia. Toda a gente as elogia, surgindo as críticas na sua ausência. Tu alcançaste algo muito mais grandioso: as críticas pela frente são tão constantes quanto os elogios por trás. Isso é talvez o mais que um Homem pode querer: ser constantemente confrontado com a sua sombra, deixar sempre a sua luz”.»

1. Alhos Vedros

Eram cerca das duas da manhã. Eu e um amigo, o Jonina, passeávamos nas ruas atrás da Velhinha, uma coletividade. Num certo momento, ouvimos uma voz que parecia dirigir-se-nos e vimos um vulto aproximar-se. “Foram vocês que me roubaram a roupa do estendal?”. “Não”. Era o Rato. Conhecia-o de vista. Conhecia melhor um dos irmãos, que cumprimentava quando via. O Silvestre. Com este nunca tinha falado e ele não me conhecia. Não acreditei na história de lhe terem roubado roupa do estendal. Pareceu-me alterado por droga ou álcool e estar à procura de confusão. Explicou a história umas dez vezes. Que estava em casa e o foram avisar de que lhe tinham roubado a roupa e viram dois gajos a vir nesta direção. “Pois, nós não fomos, como podes ver por não termos a tua roupa”.

Eu tinha cerca de 20 anos. A postura dele, tresloucada e imprevisível, estava a desassossegar-me. A certa altura, uma espécie de raiva começou a crescer nele:

– É que eu fui campeão de boxe, percebes? O gajo que tenha feito isto, eu parto-o o todo.

Pegou no nariz e torceu-o, de forma a que ficasse espalmado contra o osso da bochecha.

– Vês? Eu não tenho cana do nariz. Parti-a em combate.

A esta altura já falava bem perto da minha cara. Dirigia-se principalmente a mim. Lembro-me de sentir nojo dos gafanhotos dele. Continuava, com uma raiva crescente não sei de quê, e duvido que ele soubesse:

– Eu não ando aqui a brincar, percebes? O gajo que se meta comigo eu não tenho problemas em parti-lo todo. E também tenho uma faca aqui e se for preciso abro-o o todo.

Sacou da faca. Se bem me lembro, era uma borboleta, daquelas com as quais dá para fazer truques, abrindo-a e fechando-a rapidamente. Ele mostrou os seus skills na manipulação da arma. “Comigo ninguém se mete!”.

Neste momento, senti nos seus olhos que a sua perceção da realidade passara a outro nível. Parecia que eu e o meu amigo, enquanto humanos que cruzaram o seu caminho, eramos para ele não mais que representantes de um mundo hostil e que merecia pagar por toda a roupa, real e metafórica, que lhe fora alguma vez roubada do estendal. O perigo da situação parecia escalar e eu precisava de fazer alguma coisa. O Jonina estava ao meu lado. Não olhávamos um para o outro há muito tempo. Sentia-o tão assustado como eu. Pensei em lutar. Éramos dois. Mas não me pareceu boa ideia. Primeiro, porque talvez tivesse mesmo sido campeão em boxe. Segundo e principalmente, porque carregava consigo a sua faca e a sua aparente loucura, duas armas perigosas. Enquanto eu pensava isto e procurava uma solução para um problema que se agigantava, já ele tinha saltado para uma simulação de luta. “Se me quiseres acertar, eu faço assim”, e fazia movimentos rápidos com a cabeça entre os punhos, esquivando-se de golpes invisíveis, antes de devolver um murro que passava perto da minha cara. “Depois, basta dar-te assim e estás arrumado”. Aí, trouxe a mão até á minha cara e encostou-a. Era uma simulação, mas não foi tão devagar como devia ter sido. Não parecendo que queria aleijar, queria, como quis a noite toda, assustar. Talvez testar, causar e medir uma reação. Foi nesse momento que uma possível solução se fez palavra, sem o passo intermédio de se calcular na minha mente. Olhei para ele e perguntei-lhe, num tom pacífico, não como uma ameaça, mas como se ele devesse saber e não se lembrasse:

– Tu sabes quem eu sou?

Fig. 1: No seu terreno, aos 86 anos.

Ele ficou confuso. Parou por um momento. Notei que num primeiro momento ponderou conhecer-me. Mas essa sensação foi substituída pelo confronto. Quando respondeu “não, e tu sabes quem eu sou?”, vi-lhe a raiva a voltar-lhe aos olhos.

Eu não sabia o nome dele. Sabia que era conhecido por Rato. Então, disse: “sei, és irmão do Silvestre. Mas tu sabes quem eu sou ou não?”. Ele pareceu surpreso com o facto de eu saber quem ele era.

– Quem é que tu és?

– Sou neto do Leonel Coelho.

Os olhos do Rato esbugalharam lentamente. As suas sobrancelhas inclinaram-se na direção da tristeza, como se pedisse desculpas silenciosas, como os cães fazem. “Tu és neto do Coelho??”. Veio direito a mim e deu-me um abraço apertado. “já podias ter dito!”. Depois disso, toda a dinâmica mudou. Ele continuou o protagonista, mas desta vez contando histórias do meu avô. De como chegou a tomar conta dele quando ele era bebé, de como na sua adolescência o levava para colar cartazes e para o ajudar a apanhar azeitona. “O teu avô é como um pai, eu amo o Leonel”. Quando finalmente conseguimos libertar-nos do Rato, ele deu um abraço a cada um e mandou outro ao meu avô.

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2. Academia

As palavras raramente são suficientes para descrever o que quer que seja. Só percebendo isso alguém se pode tornar um bom escritor. Por isso precisamos de histórias. Para descrever, por exemplo, o que a história anterior tenta descrever – a marca que o meu avô deixou localmente –, “fama” ou “influência” não chegam. Há conhecimento, reconhecimento, respeito, inveja, amor, ódio, tudo misturado num espírito que existia e permanece. E não é por acaso: em nada do que fez o meu avô foi normal. Era original. Espontâneo. Preferiu sempre desbravar mato a pisar pegadas alheias. A sua posição como mestre multigeracional deveu-se muito ao facto de ser treinador de Ping-Pong de muita gente, durante muitos anos. Ou teve isso como justificação, visto que ele próprio dizia que o que menos lhe importava era se jogávamos bem ou não. Nunca quis formar jogadores, ou pelo menos nunca foi essa a sua prioridade, e, se a academia mostrou resultados surpreendentes, chegando à primeira divisão, tornando-se a equipa do distrito com melhor palmarés e derrubando, por pura diversão, equipas que treinavam a sério, foi por acidente iluminado: o desporto, para os atletas da academia, sempre foi uma brincadeira, uma diversão. E o significado de brincadeira – em inglês o verbo to play significa jogar, brincar e tocar (um instrumento) – é não ter um objetivo para além de si próprio. Jogamos por jogar, brincamos por brincar, tocamos por tocar, pelo prazer de jogar, de brincar ou de tocar. A música é a melhor metáfora: o objetivo da música é a própria música, não é chegar á última nota.

Fig. 2: A jogar ping-pong, em 2019.

Eu via as outras equipas com equipamentos, com horários para dormir e acordar, com dietas e treinos diários. Nós treinávamos enquanto os treinadores estavam na sala. Assim que saíam para a outra divisão, montávamos as trincheiras. Uma equipa de cada lado dos separadores, cada uma com uma mesa onde antes jogava e que agora servia de defesa, e o objetivo passava a ser acertar com uma bojarda na cara, na perna ou no braço de alguém do outro lado. A alegria de um era a dor do outro. Quando se ouvia aquele estalo que a bola de Ping-Pong faz ao bater com força na pele, sabíamos que um círculo roxo ia aparecer. A vítima tornava-se imediatamente um soldado mais perigoso, transformando a dor em raiva. Apesar de sermos crianças, lágrimas eram raras. Só quando uma bola ocasional acertava na cara de algum. Lembro-me de uma na testa, atirada a um metro de distância. Um corajoso aproximou-se do separador para apanhar uma bola. O adversário, ao ver, preparou a armadilha, aproximando-se do lado contrário do separador, agachado, com uma bola numa mão e a raquete na outra, à espera que a cabeça do adversário espreitasse. Quando esta surgiu, pum. Toda a gente parou, á espera da reação, enquanto o alvo se deitou no chão agarrado à cara. Era o tipo de tiro que acabava com o jogo. Não me lembro do que aconteceu depois, mas é capaz de ter havido porrada, choro ou ambos.

Até que se ouviam passos que indicavam o regresso de um adulto. Se fosse o meu avô, tudo bem. No máximo, ria. Era o único adulto que não se importava. Percebia-nos, porque era também ele uma criança. Porque sabia que aquela diversão era tão ou mais importante que o que era “suposto” estarmos a fazer. Não era crítico dos alunos que não prestavam atenção às aulas, mas da escola que não sabia cativar os alunos. “Os alunos deviam ser pagos para estudar. É um martírio.” Se fosse outro adulto a encaminhar-se para a sala – e isso sabia-se pelo barulho dos passos –, fingíamos rapidamente estar ainda a treinar. No fim, arrumávamos as mesas e passávamos a última meia hora a jogar á bola, 3 para 3 – o que também resultava em porrada com frequência.

Imaginem o que era, para equipas a sério, com fatos de treino a condizer, borrachas coladas a cada meia hora e carrinhas com o símbolo do clube, enfrentar-nos. Pior: imaginem o que era, para essas equipas, perder connosco. Uma equipa de arruaceiros treinada por aquele que era, por um lado, provavelmente o treinador mais antigo em Portugal e, por outro, o único que chumbou no curso de treinador – não por falta de capacidades, mas porque discordava de quase tudo – o que lhe permitiu ser o primeiro treinador honorário. Éramos temidos porque eramos destemidos. Não tínhamos medo de perder, nem grande interesse em ganhar, a não ser que o jogo começasse a ser interessante e quiséssemos mesmo ganhar aquele jogo. E, nesses casos, normalmente ganhávamos. Chegámos a ganhar a todos os campeões da nossa divisão. Eu cheguei a ganhar ao Mouricato, um dos melhores da minha geração. Para ele, para o seu treinador e para os seus colegas de equipa, foi o fim do mundo. Estragou-lhes o dia. Para mim, foi a hora de fazer o caminho de volta, a parte mais interessante depois do caminho de ida. Riamos mais do quão divertido foi ver a cara deles depois da derrota do que da nossa vitória em si.

O meu avô passava, á primeira vista, um ar agressivo, autoritário, impaciente. Falava alto, dizia muitos palavrões, refilava com tudo e mandava muita gente à merda. Algumas mães e alguns pais não suportavam a sua postura para com os seus filhos, o que é compreensível, porque ninguém está preparado para, indo ver o filho de dez ou doze anos participar num torneio pela primeira vez, ouvir o treinador velho a chamar-lhe, aos berros, monte de merda, pulhazito, badameco, burro ou, não raramente, soltar a plenos pulmões, enquanto batia nas próprias pernas já no auge da sua impaciência, um “flete as pernas, filho da puta!”. Até a mim me chamava filho da puta. E a minha mãe é filha dele. Chegou a dizer, a um miúdo de dez anos que jogava o seu primeiro torneio, na pausa entre sets, em que o treinador dava indicações, que o miúdo, ou ganhava aquele jogo, ou devia considerar terminar a sua carreira ali. Era proibido falar durante os jogos. Não havia ponto em que não gritasse. Ou era expulso todos os jogos, ou as regras se dobravam. As regras dobravam-se, claro, e ele só era expulso quando o treinador adversário, irritado, começava a gritar também, mas com ele.

Mas isso, o humor rezingão, era superficial. Nunca vi ninguém com um carácter mais longínquo do rancor, da verdadeira zanga, do ressentimento. Muita gente se zangava com o meu avô, mas eu nunca vi o meu avô zangado com ninguém para lá da conversa que gerou a zanga. Na ocasião seguinte, aparecia com o seu sorriso, meio terno, meio irónico – que provocador era – a encorajar as pazes. E o outro, sempre mais zangado, lá aceitava a bandeira branca até a próxima provocaçãozinha trazer de volta a irritação.

Mas os seus gestos de amor, esses não eram superficiais. Eram profundos, genuínos. Lágrimas escapavam-lhe dos olhos com facilidade, e ele tinha a coragem de não as tentar conter. A vida emocionava-o. Enquanto treinador e supervisor, não se metia em zangas ou porradas. “Às vezes a amizade só precisa de uma boa zaragata”. Mas se via um miúdo a ser maltratado ou gozado pelo grupo, intervinha. Mas intervinha de forma inteligente. Uma vez, notando que um miúdo estava a ser posto de parte, sendo vítima de gozo e humilhação, aproximou-se do grupo na ausência do tal miúdo, e disse: “tive uma ideia. O João é uma merda, não é? Porque é que não o matamos e abandonamos numa vala qualquer?”. O grupo ficou silencioso. “Não gostavam que isso acontecesse, pois não? Porque vocês gostam do João. Então não o tratem como se não gostassem.” A partir desse dia, ninguém maltratou o João, que, não sabendo da conversa, deve ter ficado confuso com o aparente milagre. A quantidade de vezes que o meu avô foi pai. A quantidade de pais que ficaram gratos pelo papel que o meu avô teve na vida dos filhos. “Ninguém me agradeceu por formar um bom atleta, mas já muitos me agradeceram por formar um bom Homem”.

Mas, voltando à vida em torno do ping-pong, nem treinos, nem jogos, nem combates, nem futebol competiam com as viagens para os jogos ou os torneios. Nada era mais empolgante do que o caminho. Quanto mais longe fosse o destino, melhor. A condição era não haver outros adultos no carro, o que nos faria ser mais controlados. Se fôssemos só com o meu avô, é inexplicável a liberdade que sentíamos na mítica Vanette. Gritávamos para as pessoas na rua. Só não eram permitidas faltas de respeito, como comentários racistas ou que tivessem o intuito de humilhar. De resto, tínhamos livre passe. O meu avô só conduzia, ria e participava com comentários. Era sempre refilão, e não há maior oportunidade para um refilão que o trânsito. E os comentários dele, para nós, crianças pré-adolescentes, eram hilariantes. Lembro-me de um rapaz com um ar armado, a andar á gangster enquanto passava a passadeira lentamente. O meu avô, que ia sempre com a janela aberta, esticou a cabeça.

– Queres acampar aí, não?

Mas os comentários do meu avô eram tão automáticos que podiam ser pérolas criativas ou não fazer sentido nenhum. Uma vez, a um gajo que buzinou, mandou-o “levar dentro da picha”.

Também mandávamos cascas de banana. Papéis ou prata não podíamos, porque poluía. Então tinha que ser cascas de banana ou de laranja. O David chegou a levar 7 ou 8 bananas para um torneio para ter mais cascas para mandar. Nós, os restantes, tivemos reações contraditórias. Gozámos com ele por levar 8 bananas, mas queríamos que partilhasse as cascas connosco. Às vezes, íamos no porta-bagagens, que era enorme, sentados em baldes virados ao contrário, passando a catana do meu avô no próprio pescoço enquanto olhávamos ameaçadoramente para os passageiros do carro que vinha atrás. O ar ameaçador durava pouco, porque não aguentávamos muito tempo sem rir.

O interesse, claro, eram as reações. E as reações eram imprevisíveis. Dos transeuntes que ouviam comentários, muitos ignoravam, ou olhavam só, não tendo tempo de reagir à carrinha em movimento. Dos passageiros dos carros que vinham atrás, podíamos ter como retorno risos ou expressões de choque por nos ver a manejar uma catana. O que nós queríamos era uma certa dose de irritação, de raiva. Era aí que riamos mais, era aí que sabíamos que tínhamos pressionado o interruptor emocional no sítio certo. Se alguém, depois de levar com uma casca de banana – ou de a ver passar-lhe ao lado, porque a maioria falhava o alvo –, nos mandasse para o caralho ou fizesse um pirete, era vitória, celebração e risada. Às vezes, quando a carrinha se via obrigada a parar num semáforo logo a seguir a um comentário, baixávamo-nos, ficando as costas onde estava o rabo e a cabeça onde estavam as costas, com risos nervosos, espreitando para ver se a pessoa estava a olhar. Uma vez, eu mandei algo pela janela, de forma a cair no vidro do carro de trás. Penso que uma prata, quebrando a regra da biodegradabilidade. O carro, movido pela raiva do condutor, acelerou de imediato, ultrapassando-nos. O meu coração também acelerou. Ele parou á nossa frente, travando a fundo e obrigando o meu avô a parar no meio da estrada, e saiu do carro. Era raiva a sério. Enquanto eu fechava rapidamente a janela esquerda do banco de trás, rodando a manivela perra, o meu avô recostou-se e disse-me: “agora amanha-te”. Não olhou para o homem e o homem não olhou para ele. Veio diretamente á minha janela, com os olhos enfurecidos, e bateu no vidro duas ou três vezes: “se os teus pais não te dão uma tareia, dou-te eu, estás a ouvir?”. Eu olhava em frente, estático, á espera que ele desaparecesse. Depois de descarregar as suas frustrações, foi á janela do meu avô. Mas á janela do meu avô poucos tinham hipóteses.

– E você, não sabe controlar os miúdos?

– Já fez o que tinha a fazer. A mim não me chateie a cabeça e siga o seu caminho.

Ele seguiu.

Penso que a academia foi o local mais importante do meu desenvolvimento social. No ping-pong, na feira do livro, onde competíamos para ver quem vendia mais e onde comprei o primeiro livro que li, ou simplesmente em passeios ao tanque do meu avô, que tratávamos como se fosse uma piscina. Tendo sido uma criança calada, reservada, introvertida, ali expus-me, mais do que noutro sítio qualquer, a um ambiente social livre e coeso. A um grupo de rapazes num estado quase selvagem, guiado por uma figura que pouco interferia, mas que interferia bem, influenciando-nos da melhor forma, chamando-nos a atenção para aquilo que podíamos fazer de bom, marcando a diferença. Formou homens competentes deixando-os aprender por si, formou homens bons orientando-lhes a atenção para o que importava. O poema “diz-lhe ao menos bom dia” espelha bem a sua intervenção junto dos seus pupilos. O simples entrava sempre: não sabemos das dores dos outros, não sabemos as suas histórias. Mas sabemos que a nossa roupa, a nossa casa e os nossos telemóveis foram feitos por alguém. Sabemos que alguém compôs a música que ouvimos, escreveu os livros que lemos e os filmes que vemos, e que alguém descobriu os medicamentos que nos curam de doenças. Cada ser humano é uma parte. Trata-o bem. Sê simpático. Sê bom. Toma atenção. E, no mínimo, diz-lhe bom dia.

O meu grupo de amigos principal, em Alhos Vedros, não se criou na escola. Das escolas por onde passei, guardo de todas uma grande minoria. Um ou dois de cada turma, no máximo. Do grupo da Academia, de quem jogou comigo, guardo a grande maioria. Farinha, Jonina, Cami, Besouro, Edgar, David, Galamba, Leandro. Todos ainda meus amigos. Não sei quantos deles se aperceberam de que foi ali, na Academia, que nos juntámos. Mas sei que todos estiveram presentes no velório ou no funeral do meu avô. Não por mim, ou não só por mim. Mas por ele, o meu avô. Pelo Coelho.

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3. Histórias

Estava na barbearia do Hugo quando entra o professor Carlos. A barbearia do Hugo era uma barbearia tradicional, onde homens se juntavam para conversar das coisas não faladas à frente das mulheres. O professor Carlos, que eu conhecia e foi professor na minha escola, apesar de nunca ter sido meu professor, não entrou para cortar o cabelo, mas para se juntar ao grupo de cinco ou seis que lá conversavam. Vendo-me, falou imediatamente do meu avô.

Fig. 3: Na Barragem do Alqueva.

– Vou-te contar uma que não deves saber – falava para mim, mas para que todos ouvissem. – Houve uma conferência de médicos em Lisboa, num hotel. O teu avô, sabes como ele se veste, com roupa de andar no campo. Nesse dia, apareceu lá de fatinho. Todos pensaram que era médico. A conferência aconteceu, normalmente. No fim, a mesa perguntou se alguém do público queria pedir a palavra. Quem levanta o braço? Claro, o Leonel Coelho. Com o seu grande poder oratório, começou a discursar sobre o estado do sistema nacional de saúde. No fim, toda a sala se levantou. Foi aplaudido de pé. Imaginas isto? Ninguém mais faria isto. Um gajo que não é médico infiltra-se numa conferência de médicos e acaba aplaudido de pé.

Se houvesse sítio onde conhecessem o meu avô, era certo que iria ouvir uma história nova. Mesmo no fim foi assim. No velório. Ao fim da manhã, depois de ter ouvido o José Ribeiro, da funerária, dizer que ia comer uma bifana, liguei-lhe, à procura de almoço, para perguntar onde havia as tais bifanas.

– Estou no Quebramar. Está fechado, mas deixa ver… olha lá, arranjas almoço para o neto do Leonel? – Ouvi um “claro” à distância. – Bate à porta quando chegares.

Quando cheguei, bati à porta. Um homem, que não conhecia, abriu. Estendeu-me a mão.

– És o neto do Leonel, não é?

Acenei que sim, enquanto lhe apertava a mão.

– Eu era muito amigo dele. Gostava muito dele.

Nesta altura, começou a chorar. Abracei-o. Era o Nato. Desde aí, ficámos amigos. Nas duas horas seguintes, fiquei a comer e a beber com ele, o José Ribeiro e mais dois ou três desconhecidos que, à vez, contavam histórias do meu avô.

Era uma constante. Mas havia as histórias recorrentes. Aquelas que ouvi várias vezes e que gostava, e gosto, de ouvir várias vezes, porque mostram a singularidade do meu avô. Numa delas, que o Manel, presidente da Academia, meu grande amigo e companheiro de jantares e discussões, gosta de contar, iam para a Ortiga, terra do meu avô, quando ele (o meu avô) percebeu que não tinha os documentos do carro. Entre todas as possibilidades de ação que surgem da realização desta lacuna, surgiu-lhe a mais original que posso imaginar: “Vou à polícia”.

– Olhe, senhor agente, eu vim à terra e apercebi-me de que não tenho documentos. Vim-me entregar de livre e espontânea vontade. Mas eu tenho que sair daqui, seja para seguir em frente ou para voltar para trás. Tenho que conduzir sem documentos. Portanto, façam alguma coisa, arranjem uma solução.

“Se vocês vissem a cara dos polícias”, diz o Manel, “completamente desorientados, sem fazer a mínima ideia do que fazer.” Estavam apáticos, perdidos. Ligavam a superiores, olhavam uns para os outros. Não havia protocolo para isto.

– Passem-me uma guia, qualquer coisa! – dizia o meu avô.

Nada. Depois de um tempo à conversa, foram embora sem solução.

Mas há várias com polícias. O meu avô era um mestre a lidar com polícias. Numa, estava à pesca num sítio onde era proibido pescar, quando viu um polícia a aproximar-se do carro, que estava estacionado num descampado ali ao lado. O polícia agarrou num papel e começou a anotar a matrícula. O meu avô, à distância, dirigiu-se-lhe:

– É proibido estacionar aí?

O polícia, confuso, retaliou, ignorando a pergunta:

– Não sabe que é proibido pescar nesta zona?

– E o carro está à pesca?

– Não, mas o senhor está.

– Então porque é que está a apontar a matrícula do carro?

Depois disto, só sei como a conversa terminou: com o meu avô a insistir: “Não, agora multe-me! Não me queria multar? Multe-me!”, enquanto o polícia, desesperado, tentava sair dali em paz. Conseguiu escapar à multa, sendo o polícia a sentir-se a escapar à multa.

Noutra ocasião, numa história também contada pelo Manel, ia a equipa de ping-pong a caminho de um torneio quando se depara com uma operação stop. Enquanto procurava os documentos, que haviam de estar algures escondidos num monte de papeis de dez centímetros de espessura, dizia ao polícia:

– Olhe, veja o que tem a ver, mas por favor seja rápido, que os miúdos têm torneio e já estamos atrasados.

O polícia, confrontado com a pressa, adotou uma postura contrária ao solicitado. Querendo aparentemente mostrar quem manda, começou a demorar propositadamente, empatando o tempo com perguntas desnecessárias e não mostrando a mais pequena urgência. Uns minutos passaram-se. O meu avô olha para o relógio. Depois, olha para trás, na direção de um dos atletas, aquele que iria jogar primeiro:

– Olha, tu… já não jogas.

Depois, passando o monte de papeis de dez centímetros de espessura para as mãos do polícia, e com ela a tarefa de procurar os documentos, disse, com o seu olhar típico, de olhos semicerrados e boca torta:

– Olhe, já perdemos por falta de comparência, portanto acabaram-se as pressas. Tenho todo o tempo do mundo. Agora, é devagaaaar.

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4. Amigo

A minha relação com o meu avô era tão única como ele. Na minha idade adulta, já não parecia uma relação entre avô e neto, mas uma relação entre amigos de idades diferentes. Falávamos de tudo. Ele falava das suas namoradas do passado, dos seus sentimentos, do que sentia pela minha avó, do que sentia pela morte da minha avó, do que sentia pelo meu irmão e pela sua morte aos três anos de idade. Às vezes chorava. Contava-me os seus sonhos. Eu falava-lhe dos meus amores, quando ele perguntava. Eu mostrava-lhe músicas e ele comentava, ele mostrava-me músicas e eu comentava. Era das únicas pessoas que conheci com a capacidade de dar atenção plena a algo novo. A maioria das pessoas, quando se lhe mostra uma música, ouve vinte ou trinta segundos, comenta algo e começa simplesmente a falar, deixando de ouvir. Ele não. Ele focava-se do início ao fim. Quando a música acabava, comentava. O positivo e o negativo. E sempre algo útil e original – isto, quando a música era minha, quando a sua visão podia ser útil. Quando escrevia um poema novo, lia para mim ou pedia-me que lesse para ele. Espantava-me sempre, e encorajava-me sempre, a cada poema, que um cérebro com mais de oitenta anos pudesse ter aquela criatividade, aquela capacidade de produzir algo tão simples e tão novo; tão fresco. Quando eu escrevia algo, entregava-lhe o trabalho impresso e ele lia, tomando o seu tempo, tirando notas, o que resultava numa conversa longa sobre aquela criação.

Fig. 4: Numa viagem qualquer.

Viajávamos muito juntos, passeando por Portugal. Discutíamos frequentemente, gritávamos um com o outro. Principalmente no carro, enquanto eu via o caminho no GPS e ele estava convencido de que havia outro melhor. Mesmo que eu tivesse razão, nunca a tinha. No máximo, havia um silencio ou uma mudança de conversa, o que era equivalente a uma admissão implícita. “Eu sei que já percebeste que não tinhas razão, não precisas de dizer”, dizia eu em tom provocador. Numa das últimas viagens que fizemos, chateámo-nos “a sério”. “Eu nunca mais venho contigo a não ser que seja eu a conduzir!”, dizia ele. “Tu és burro, mas eu vou conduzir calado e quando tu perceberes que o parque é onde estou a dizer, logo te respondo”, dizia eu. Fomos calados nos cinco minutos seguintes, até que apareceu o parque. Eu não disse nada. A minha mãe ligou-lhe assim que saímos do carro.

– Parámos agora. Vamos almoçar aqui num parque uma refeição surpresa que eu preparei. Já houve uma queziliazita, mas também faz parte.

Riamos e estava arrumada a discussão. Almoçávamos, bebíamos um copo de vinho e fumávamos um cigarro. De vez em quando, jogávamos uma malha. Mesmo na nossa última viagem, em que ele estava visivelmente debilitado, magro, custando-lhe a baixar, ganhou-me.

Isto ilustra bem uma parte da nossa relação de amizade. Mas não era só. Há uma história que ilustra bem o à-vontade e a abertura da natureza da nossa relação. Tínhamos ido levar livros às editoras, um ritual que se seguia à feira do livro. No caminho, também houve discussão. Foi pouco depois da aparição do GPS nos telemóveis. Ele conhecia bem Lisboa, mas os caminhos estavam diferentes. Às vezes, queria que eu o usasse. Outras vezes, dizia que eu o desligasse. Eu deixava-o ligado, seguindo o caminho que ele indicava mas ficando atento ao caminho recomendado pelo GPS. Visto que as indicações (“saia na terceira saída”) eram dadas por uma voz feminina, o meu avô referia-se ao GPS como ela.

– Rafael, para de seguir isso! Eu estou mesmo a adivinhar que ela nos vai mandar para uma autoestrada só para pagarmos portagem!

– Não fales à toa. Eu pus para isto evitar portagens.

Ele encolhia os ombros e olhava para o outro lado.

Estávamos a caminho da editora Europa-América e, quando dou por mim, estamos na autoestrada. Assim que entramos, avista-se a portagem:

– Eu já sabia!

Eu ria-me.

Parei na portagem e abri a janela, rindo, depois de dizer ao meu avô para arranjar um euro. O meu avô pôs a mão ao bolso, virou-se para a mulher que estava de serviço, e disse-lhe:

– Estamos nós a ir para a Europa-América e esta gaja manda-nos para aqui para pagar portagem!

Ora, a mulher não deve saber que europa-américa é uma editora. Também não sabe, de certeza absoluta, que “esta gaja” é o GPS. Eu começo a rir de uma forma que me tirava todo o ar. Um expiro continuo quase desesperante. Uma incapacidade absoluta de falar ou sequer de respirar. Isto, porque me pus no lugar da mulher da portagem: «uma “gaja” invisível – se ele diz “esta” é porque eu devia estar a vê-la – mandou-os para a autoestrada enquanto eles se dirigiam a uma combinação de dois continentes, europa e américa. Isto são dois malucos de certeza». E quando tenho esta imagem na cabeça e começo a rir de uma forma que nunca ri antes, com baba a cair-me dos lábios, a imagem agigantou-se: agora é que é mesmo certo que ela pensa que somos malucos. O velho no lugar do morto diz que são dois gajos a viajar rumo à “europa-américa” e a receber instruções “desta gaja”. O novo no lugar do condutor está completamente incapacitado por um riso que nem eu nem o velho percebemos.

Mas isto não é a história ilustrativa que ia contar. Essa deu-se mais tarde, quando parámos para almoçar. Como disse, falávamos de tudo. Nessa altura, eu tinha andado a ler sobre a diferença entre chimpanzés e bonobos, os macacos mais próximos do humano geneticamente. Então, enquanto comíamos, falei-lhe sobre isso:

– Os chimpanzés vivem em comunidades completamente patriarcais, no sentido violento. O poder é decidido pela quantidade de machos que um macho consegue derrotar e pela quantidade de fêmeas que ele consegue violar. Há gangues e, se há um dissidente, chega a ser despedaçado. Os bonobos têm o oposto: não há violência, de todo. Resolvem tudo com sexo. Sexo entre todos. Homens com mulheres, mulheres com mulheres, homens com homens, adultos com crianças. O sexo é uma ferramenta social que resolve qualquer problema. Sempre que há a mínima tensão ou sinal de conflito, sexo. Fica resolvido.

O meu avô olhava para o prato enquanto comia. Parecia distraído, o que não era habitual. Engoliu a garfada, fez um trejeito de boca, e mostrou que afinal não estava distraído, dizendo:

– Não me admira nada. Eu, sempre que estou um bocado mais irritado, bato uma punhetazita e fico logo mais calmo.

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5. Avô

26 de setembro de 2021. Eu em Edimburgo, ele em Alhos Vedros. Ligou-me, como quase todos os dias. Não atendi. Liguei-lhe dez minutos depois: “ouve o som e adivinha onde estou. A jogar ping-pong”. Riu-se. “Ia-te dizer para veres o programa que está a dar na RTP2. Não podes perder isto”. “Está bem, vou ver quando chegar a casa.” 27 de setembro. A minha mãe diz-me: “o avô caiu duas vezes. O Manel ficou muito preocupado com o aspeto dele hoje”. Liguei-lhe. “Hoje isto não está bom para mim, Rafael. Caí na quinta do anjo. Se não estivesse lá a cerca para me ajudar a levantar, ficava lá”. “Mas caíste como? Porquê?”. “Porque estava de pé, Rafael”. “Mas tropeçaste, desequilibraste-te…?”. “O meu equilíbrio está nas últimas”. 28. Mal se levantava da cama. Quando lhe liguei, disse que não podia falar. O esforço era demasiado: estava a cozinhar uma pescada e estar de pé custava-lhe. “Leonel, se calhar é mesmo melhor ires ao hospital”, disse o meu pai quando lá foi. “Nem pensar! Eu estou bem. A cabeça está bem, os braços estão bem”. Foi preciso um estratagema: ligar ao Dr. Sampaio, que o meu avô respeitava. Entrou em casa de surpresa para o ver. O quadro não era bom: anemia grave, coração fraco, abdômen inchado. Escreveu uma carta para levar ao hospital. O meu avô concordou em ir. “Mas não ainda”.

Fig. 5: Algures nos anos 90.

Hemoglobina a três. “Se fosse eu ou a senhora”, disse o médico à minha mãe, “estávamos mortos”. O meu avô, porém, foi fazer uma pescada. A última. Transfusões de sangue para normalizar os níveis antes de testar o que quer que fosse, e assim se passaram dois dias. Marquei voo. Ia viajar no dia seguinte, terça-feira, às 7 da manhã. Recusaram a minha entrada no avião. Aparentemente, o certificado de vacinas do reino unido não era aceite, apesar de não ser essa a informação disponível no site oficial do governo português. Precisava de um teste. Mostrei-lhes o site, questionei: “eu quero perceber duas coisas. Em primeiro lugar, se há uma solução. Em segundo, olhando para estas informações, de que forma podia eu adivinhar uma informação contrária ao que está escrito”. A primeira mulher leu e deu-me razão. Chamou a chefe, que não me deu mais que palavras repetidas e insensibilidade. Discuti com ela com lágrimas de tristeza e raiva. Ela evitava os meus olhos. Voltei para casa e, às 9 da manhã, adormeci.

Acordei às 14:30. Recebi o telefonema da minha mãe. O avô tem danos em três órgãos, provavelmente cancro. Voltei a marcar voo para quinta-feira, às 6 da manhã, e teste para o dia anterior. Ele ligou-me. Estava com a voz arrastada. Mas continuava a ser ele. Enérgico, refilão, ternurento. Falámos um bocadinho. “O cansaço é muito, Rafael. Ficamos por aqui agora”. “Adeus, avô. Viajo na quinta. Beijinhos”. Nesse dia, escrevi: “Espero que ele volte a regar as suas plantas e que publique o livro que quis dedicar ao seu amor, minha avó.”

Fig. 6: Em 2020

Os dois meses seguintes não vale a pena narrar, mas já não era meu amigo, nem meu treinador, nem meu mestre. Era meu avô. O meu avô. O meu avô que me levava todos os dias à escola primária, ficando a arranjar alcunhas para as mães das outras crianças. A “palhaça”, que estava cheia de maquilhagem. A “mulher que engole o fogo”, que era feia. Era esse. O meu avô. E o que restou, desses dois meses, mais do que a desgraça, foi a sua beleza. A beleza dos detalhes que acompanhou a decadência e o esvair da esperança. A primeira vez que cheguei ao hospital, senti uma injeção de alegria. Ele estava bem, com o sangue renovado, espevitado, alegre, a contar-me sobre as discussões que tivera com a colega de quarto, de quem “até as moscas fugiam”, e sobre como fazia ginástica, exemplificando com as pernas para o ar. “Aqui”, dizia enquanto dava palmadas na barriga, onde o tumor causava um inchaço, “ninguém toca. Dêem-me medicação e mandem-me embora”. Uma enfermeira, ao ouvir as palmadas, espreitou:

– Senhor Leonel, não pode estar a bater na barriga assim!

– Desculpe?! Não posso?! Pode dizer-me que não devo, agora poder, posso de certeza.

Na segunda vez que o fui ver, passada uma semana, a visita teve que ser interrompida a meio, por causa das dores. Depois disso, a “valsa lenta”, demasiado lenta, do adeus. Do hospital, sobrou essa beleza do amor retribuído por tantos. Havendo visitas diárias, havia fila de espera para o visitar. Pessoas marcavam com duas semanas de antecedência. Isso foi bonito. Os habituais – eu, a minha mãe, o meu pai e o Manel – habituávamo-nos á rotina. Fazer-lhe a barba, ouvi-lo reclamar – o que eu gostava, porque mostrava que mantinha a força –, dar-lhe de comer, partilhar as novidades políticas e futebolísticas. Também riamos. Era impossível, mesmo aí, não rir com o meu avô. Riamos sempre que alguém contava a sua visita. O professor Carlos, de quem falei antes, ouviu enquanto lhe dava comida, falhando em seguir as indicações: “Mas tu nunca deste de comer aos teus filhos?!”.

Fig. 7: A ler para mim, na Quinta da Cardiga.

Passados dois meses, conseguiu vir para casa, onde passou a sua semana final. Mérito próprio. Foi tratado, como foi sempre, de forma especial. Em parte, graças à Clara e à Andreia, a quem nunca poderei agradecer o suficiente. Em parte, e principalmente, porque até doente deixou a sua marca desde o seu primeiro dia no hospital. Isso foi notório desde a minha primeira visita. Numa fila de visitantes, cada um dizia o nome do paciente, a enfermeira procurava na lista e dizia o número da cama. Quando eu disse “Leonel Coelho”, a cara dela alterou-se: “Ah, o Leonel…”, disse com cara de quem fala de uma criança problemática ao pai que a vai buscar ao infantário. “Cama 8”.

Como dizia, a ida para casa foi por mérito próprio. Contou-me outra enfermeira que ele lhe disse algo que ela “nunca esqueceu”:

– Senhora enfermeira, ouça uma coisa. Este hospital tem portas. Portas servem para sair e servem para entrar. Mas este hospital também tem janelas. E se não me deixarem sair pela porta, eu saio pela janela.

Tive a sorte de passar grande parte dessa semana com ele. Três dias antes de morrer, um dia antes de perder a fala, disse-me, a olhar-me nos olhos, sabendo que não aconteceria, mas querendo transmitir algo que eu, entendendo, não sei pôr em palavras:

– Temos que ir passear, Rafael.

Depois de passar a um estado entre o sono e a vigília, já sem praticamente comunicar, mas mantendo uma aparente capacidade de ouvir, eu disse-lhe:

– Temos que ir passear, avô.

Na sua penúltima noite, em que dormi, de porta aberta, na sala ao lado do quarto onde ele estava, antigo quarto de costura da minha avó, ele chamava-me de hora a hora. Eu sabia que era um chamamento porque, apesar de parecer não ver e de não falar já, os gemidos paravam quando eu chegava ao quarto e lhe dava a mão. Ele apertava. Eu cantava: “dorme, meu menino, em estrela d’Alva…”. Quando notava que ele adormecia, por a mão voltar a ficar relaxada, voltava para o sofá. Dormia até o ouvir chamar de novo. Voltava. Dava-lhe a mão. Ele apertava. Falava com ele. Parecendo-me ter ouvido, entre os murmúrios, a palavra mãe, e sabendo a possibilidade de o cérebro que se apaga viajar por memórias antigas, fingi sê-la: “está tudo bem, Neo. Podes descansar.”

Passadas pouco mais de vinte e quatro horas, descansou. Deu o suspiro final de mão dada com a filha, minha mãe.

Até o fim foi à Leonel Coelho. Em casa, rodeado de amigos e familiares. Velado no quarto, com casa cheia.

Nos dias que se seguiram, difíceis, mas não tão difíceis como os anteriores, percebi algo de cuja generalização ainda não estou certo: que o que nos faz chorar não é a tristeza, não sozinha. O choro é social. Pelo menos um certo tipo de choro. O que nos faz chorar é algo sem nome, uma espécie de junção entre a tristeza e o amor, a tragédia inerente à vida e a bondade inerente à relação entre pessoas que se querem bem. Não é a tristeza de estar num funeral, mas o abraço da pessoa certa na presença dessa tristeza. O ombro. O colo. O gesto bom no momento mau.

Um ano antes, no seu último aniversário, tinha-lhe escrito: “A maior parte das pessoas tem o azar de ser constantemente vítima de simpatia. Toda a gente as elogia, surgindo as críticas na sua ausência. Tu alcançaste algo muito mais grandioso: as críticas pela frente são tão constantes quanto os elogios por trás. Isso é talvez o mais que um Homem pode querer: ser constantemente confrontado com a sua sombra, deixar sempre a sua luz”.

Tê-lo como avô seria privilégio suficiente, e esse é só meu. Mas eu tive-o como muito mais que isso. Como amigo, treinador, mestre, exemplo, companheiro de viagens e aventuras. Eu e tanta gente em quem deixou a marca da sua unicidade.

Despedi-me, terminando com as palavras: “O meu último privilégio foi poder estar contigo nos teus últimos dias e dar-te a mão e a voz nas tuas últimas noites. Só aguento a tristeza porque a gratidão é muito maior. Obrigado, companheiro. Até sempre. Encontramo-nos nos meus gestos e histórias.”

Artigo escrito em Julho de 2022 para a Revista Sentir Alhos Vedros. Edição completa aqui.

Carta ao Velho que Serei

«Quando leres esta carta, se leres, já nao te lembrarás do que foi escrevê-la. E eu, que a escrevo, preciso de ta escrever para me libertar do peso que é viver lembrando-me do que se passa, olhando o redor como se o visse do porvir. Tenho vinte e quatro anos que vejo como se a morte me batesse à porta, e olho para o vento a bater nas árvores sem esquecer que esquecerei esse momento. Um homem toca violino num parque de Madrid e eu oiço-o triste, pensando que, quando ele já nao tiver forças, ninguém se lembrará dele. Outro virá para o seu lugar, fazer uma qualquer actividade, seja dar música, fazer magia, fazer caricaturas, e o seu funeral estará vazio. Só passará fugazmente pelas mentes de transeuntes recorrentes que sintam eventualmente a falha. E não por muito tempo.broken-conceptual-cracked-1906537.jpg

Sem que existas ainda, penso demasiadas vezes em ti. Ao contrário de muitos outros animais, o ser humano aponta a objectivos, aponta a um futuro. Mesmo que irreal, mesmo que ilusório, há sempre imagens do inexistente, mistela de vontades e medos. Poder-me-ia focar no facto de ser uma corrida atrás de um ponto a que nunca se chega, mas não é isso que importa agora. O que importa agora é a dificuldade de me manter no presente, no momento; a incapacidade de domar a minha mente, vendo no velho que passa numa cadeira de rodas, demasiado cansado para lutar com o que quer que seja, esperando apenas que se apague a sua consciência para sempre, a criança que foi. Na criança que brinca e chora depois de esfolar o joelho, vejo o velho cansado que será, tendo como única vontade contar a alguém a criança que foi. Mas ninguém o quererá ouvir. Vejo o sentido e a falta de sentido de tudo, e não me posso queixar de imaginação ou raciocínio. Mas, como queremos todos o que não temos, eu queria outra coisa. Ser só, levemente. É claro que consigo sentir, mas muito brevemente. Sorrio e, logo a seguir, conheço o meu sorriso. Choro e, quase de imediato, conheço o meu choro. Sei-os, deturpo-os. A consciência rompe a corrente e afasta-me do momento, tanto mais quanto maior se tornar a vontade de nele voltar a mergulhar.

Pesa-me tanto ser eu. Pesa-me tanto não poder ser outra coisa que não eu, não poder ver, ouvir, tactear, sentir o mundo de alguma forma que esteja fora deste corpo que me faz. Eu sou o meu corpo, nasci com o meu corpo e com o meu corpo morrerei, vontade ida de todas as células que em conjunto formam sistemas que me mantêm. Formam-me os ossos, a pele, o coração e restantes vísceras. Formam-me o cérebro. Formam-me as ideias e o peso da consciência de estar vivo e de ser o que sou. E o que sou eu, parado num tempo que não pára? O que sou eu, que envelheço nos interstícios invisíveis do tempo que dão tamanho às árvores aparentemente paradas, que modificam espécies e planetas, que fazem crescer cancros e flores?

Observador silencioso como o tempo, olho pelos meus olhos, não tendo outros. Se se fecharem, escuridão. Não tenho nada para além do meu corpo, nem nada para além do que sinto do que o mundo é. Pensar é outra forma de sentir. É sentir por degraus lentos dormindo em cada um deles. Quem me dera que percebessem o que quero dizer. Quem me dera que as minhas palavras tivessem um destino imortal que não existe, pois mesmo a Terra acabará, e com ela todos os papéis, computadores e mentes. E todos o sabemos e somos viciados em não o saber, contando as horas que temos para deixar uma marca na areia até à próxima onda.

Eu sei o que é sentar-me na montanha e olhar tudo de cima. Eu sei o que é ver cada homem seguir a sua vontade, qual célula de um corpo maior. Só não sei como sorrir sem o peso de o saber, nem acordar sem vontade de chorar o regresso da consciência.

E, pior do que não suportar a vida de que não se pode fugir, pior do que não suportar a ideia da morte que se aproxima, é não querer nem vida nem morte. Pior é ninguém saber, e ninguém sabe.»


Excerto escrito em 2015, em Madrid.

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A que o Amor nos Ensina Sobre a Nossa Mente

O amor é como qualquer outro comportamento, mas talvez constitua um exemplo melhor do que qualquer comportamento mostra. Isto porque o amor é das poucas coisas em que é unânime a ausência de escolha: todos sabemos que não escolhemos quem amamos.

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Assim, tudo o que está relacionado com o amor, funcionando da mesma forma que o resto, mostra-nos mais claramente o poder do “coração” – por outras palavras, mostra-nos, sem que lutemos contra isso, que o que temos de consciente é um resultado de uma análise inconsciente: algo profundo em nós analisa o outro, e tudo a que temos acesso consciente é ao resultado dessa análise: sendo através de uma emoção que nos faz aproximar, sendo através de uma emoção que nos faz afastar.

Tal como através do paladar e do olfacto retiramos informação sobre a qualidade dos alimentos, através do beijo, retiramos informação sobre o sistema imunitário do outro, mas não o sabemos: conscientemente, há apenas um sabor, uma textura – um prazer ou um desprazer. O consciente é, assim, um espaço em que a análise inconsciente se expressa, fazendo-nos agir, fazendo-nos afastar ou aproximar.

Explicar o nosso comportamento – qualquer comportamento – é como explicar porque se ama alguém: por mais que achemos saber, não sabemos. Não é para saber que somos conscientes, mas para agir de acordo com o que, inconscientemente, sabemos sem saber.


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A Depressão de Dostoiévski: uma análise da mente doente

Há tempos que a sua cabeça era dominada por demónios que guiavam o seu pensamento pelos caminhos do desespero, da agonia, da indiferença. Por fim, de uma indiferença agoniante: a indiferença que se torna agoniante por ser definitiva, por ser sentida como definitiva.

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Artwork by Robert Carter

A agonia de ser indiferente e de sentir indiferença lembrando que um dia se foi diferente e sabendo que não se voltará a ser; a sua indiferença era a incapacidade de sentir que lembra distantemente o quanto sentiu, não o conseguindo repetir e temendo não o voltar a sentir. Na verdade, é o medo a base de qualquer forma que o desinteresse tome. E talvez se possa dizer que Fiodór só é incapaz de sentir, não porque já sentiu tudo, não porque a repetição de tudo o habituou e tudo tornou desprovido de interesse, mas porque o medo lhe construiu um muro, que impede o olhar as coisas pela omnipresença do medo de não conseguir olhar as coisas novamente. Desta forma, cada vez que uma coisa se dispunha a ser olhada, a cor do medo pintava-a. E essa cor, esse tom que embebia o seu olhar, não era algo como “esta coisa não importa”, “esta coisa tanto faz”, “esta coisa é uma repetição”; isso é apenas a forma adoptada por algo mais profundo. O tom de que o seu cérebro cobria automaticamente a situação, a origem dessas formas que tomava a intuição incial, era o tom do medo. Quando via uma criança a correr feliz, a sua atenção estava focada, não na criança, mas na sua percepção da criança: era o medo de não se focar na criança que o fazia focar-se na questão “sinto a criança?” e não na criança. E assim para tudo.

Mas basta pensarmos: desinteresse real seria não pensar. Não pode ser de outra forma: desinteressante é algo em que não vale a pena pensar, como as palavras de um professor para um aluno. E não estou a apontar uma contradição, porque o Homem não é se não contradição e assim deve ser. Estou a dizer que, uma pessoa sentir verdadeiro desinteresse seria não pensar em nada. Neste caso, o que há é um desinteresse pelas coisas resultante de um interesse obstinado em si. Uma paranoia, uma obsessão-compulsão, uma depressão, uma ansiedade… O que lhe quiserem chamar, que eu não entendo bem a diferença. Assim, o retrato de Fiodór, o retrato do verdadeiro niilista, do niilista que a certo ponto prefere a morte à vida, é o de alguém em que um estado de consciência invadido pelo medo fá-lo pensar constante, obsessivamente a partir desse medo. O seu desinteresse é só uma forma de um medo, uma forma que o faz estar constantemente concentrado em si.

Se estivermos na selva e virmos um leão a passar, o que faz o medo de que somos possuídos é focar o leão, a ideia do leão. E pensamos obstinadamente sobre o leão, sobre onde estará, sobre como fugir se ele vier. O medo do leão acciona o raciocínio – aquilo a que damos esse nome – que é dizer, por outras palavras, que toda a nossa atenção se foca nessa ideia enquanto surgem pensamentos relacionados com ela, sob a orientação da “cor emocional” do pensamento, que pode ser vista como o que é indicado pela expressão que toma o corpo e as faces – pela linguagem corporal. Se disser com os olhos arregalados, baixinho e a tremer notoriamente: “passou um leão”, aquilo que compreendemos de imediato como medo será a cor da ideia expressa, que com uma cor será interpretada pelo ouvinte. Se eu digo isso com medo, o outro ficará com medo. O que faz o pensamento em qualquer forma de “doença mental” que possa ser sintoma de genialidade ou ter a genialidade como sintoma, é o mesmo: o “eu ter medo” torna-se o objecto do medo, torna-se o leão, até que a atenção está constantemente focada em si própria. O que causa o afastamento é a atenção estar focada em si própria – não vendo com clareza porque comandada pelo medo, que não faz se não aumentar – estar focada não na coisa vista, mas no acto de ver, não na coisa sentida, mas no acto de sentir, com a cor do medo de não ver ou não sentir.

Assim, mesmo aquela que parece ser uma forma de abandono do ego é egocêntrica: um animal cujo cérebro, usando o medo como defesa, se cobre de tal forma desse medo que todo o cheiro, todo o som, toda a imagem, memória ou imaginação, tem o seu paladar, o seu odor, a sua variação de cores, o seu comprimento de onda. A sua inteligência, associativa, liga tudo àquele medo. E como fugir de algo para o qual tudo leva? Como podia Fiodór fugir do medo se tudo para que olhava lhe trazia o medo, bloqueando-lhe os sentidos? Como pode alguém esquecer algo ao qual associa tudo? Não pode, pelo menos por escolha própria.


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Da célula à Sociedade: O Problema Corpo-Mente, a Inteligência e os Níveis de Realidade

O Homem, na tentativa de imitar o cérebro, criou o computador – formado por disposições, que o fazem agir da forma X no caso do estimulo Y (o que é a base perceptível da mente). Ora, comecemos na célula.

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A célula é organismo vivo mais pequeno, sendo todo o organismo maior um conjunto de células que partilham o mesmo código genético. Passando milhões de anos de uma evolução muito lenta em relação à nossa vida invidual, uma das coisas que a caracteriza é ser sempre uma interacção cada vez mais complexa entre células individuais, cada uma dela programada com disposições, para dar um output a um determinado input, e cada uma delas munida de vontade – a expressão dessa resposta.

Os computadores não se reproduzem, mas re-produzem-se (produzem-se de um ponto de partida sempre actualizado) porque o homem nao se reproduz só biologicamente, mas mentalmente, partindo cada ser de uma memória colectiva e sendo as inovações feitas a partir das inovações anteriores – permitindo a linguagem uma evolução não biológica. Mas há uma diferença: a natureza não pensa, e é esse não-pensamento que caracteriza a evolução – aquilo a que Dawkins chamou “the blind watchmaker“: sendo cada organismo uma possibilidade aleatória de adaptação a um certo ambiente, ou se reproduz por sobreviver, espalhando o seu código genético, e morre, ou não resulta e morre. Ao longo de milhões de anos, uma regra forma conjuntos de células que agem em conjuntos cada vez mais complexos, organizadas em vários sistemas que desempenham diversas funções: sistema digestivo, respiratório, cardiovascular, nervoso. E o corpo existe à imagem da célula: as células do sistema nervoso têm uma função idêntica à do núcleo da célula: gerir e controlar percepcionando o ambiente de alguma forma. O cérebro fá-lo através dos sentidos, numa cabeça com orelhas, olhos, nariz, boca e um centro que interpreta e organiza os sinais (o cérebro e os seus diversos sistemas).

Desta interacção cada vez mais complexa entre células com vontade, emerge em primeiro lugar uma mente que tem representações mentais de como agir – imagens mentais que expressam propensões, resultados de regras abstractas marcadas por emoções e sentimentos, por sentir.

Assim, as nossas emoções e sentimentos são as versões mais avançadas até ao momento da homeostase – gestão da vida – presente em qualquer célula e resultado da interacção entre elas: a vontade comum de muitas células em constante interacção. Daí emerge uma mente (imagens mentais), que partilhamos com muitos outros animais, um Eu (que partilhamos com alguns) e uma consciência. Agora vejamos: o que são essas vozes conjuntas de que é expressão qualquer fenómeno mental? O eu sou eu, que estou a escrever, tu, que estás ai a ler? A consciência és tu, que sabes que estas ai a ler, e eu, que sei que estou aqui a escrever. A mente, todas as as imagens e pensamentos. E não só imagens visuais, mas qualquer dor, sentimento ou sensação. E sendo isto tudo variações do sentir, podemos dizer que a célula sente, e a interacção simples entre milhões de células, ou o produto da interacção que forma unidades muito complexas, composta por sistemas muito especializados e desenvolvidos, sente (mentalmente), é (tendo uma perspectiva, um Eu) e sabe que sente e que é.

Mas o que há a reparar, em questão de perspectiva, é que nenhuma célula sabe da minha existência enquanto Eu, ou mente, ou consciência, tal como eu não sei da existência da vontade da célula singular. É claro que a posso deduzir ao fim de milhares de anos de pensamento e investigação, mas a experiência mental do organismo ignora aquilo de que resulta, como qualquer perspectiva: é e, eventualmente, sabe que é, agindo de determinada maneira, ainda guiado, e para sempre, pelos mecanismos de gestão da vida, que nos aproximam do que a evolução aprendeu que era bom e nos afastam do que a evolução aprendeu que era mau, seja através de bons ou maus cheiros, de boas ou mas opiniões, de boas ou mas músicas, do aborrecimento, do receio, do amor ou da repugnância.

O que está guardado das disposições dos nossos cérebros não é o objecto, mas guias disposicionais que relacionam objecto, ambiente e eu. Não estava no meu cérebro a pessoa que amo, estava no meu cérebro a disposição para amar alguém em determinadas circunstâncias. Ou seja, vários factores – um incalculável conjunto conjuntivo e disjuntivo de factores exteriores, interiores e multidimensionais – contribuem para tudo o que se passa no meu cérebro, e portanto na minha mente, a um dado momento.

Prestem, por um segundo, atenção às capacidades do vosso corpo: pensa, sente, mexe-se, recicla alimentos, tirando deles energia e deitando fora o desperdício, retira oxigénio do ar envolvente, espalha-o através do sangue bombeado pelo coração; tem ossos que mantêm uma estrutura, músculos que a movem e pele que os protege. Tem órgãos! Tudo isso que tu és é um aglomerado de órgãos tão complexo que se tornou auto-consciente, mas só parcialmente. Um aglomerado de órgãos que é uma actividade entre células.

E o que é a sociedade se não um nível acima, se não um aglomerado de órgãos que é uma actividade entre Homens? No teu corpo, células morrem e reproduzem-se. Hoje não és as mesmas células que eras há dez anos – tirando os neurónios e as células da retina, que são sempre os mesmos. E isso não te mudou a identidade. Também Portugal é “o mesmo país” de há duzentos anos, sem nenhuma pessoa viva ser a mesma. E é esta a inteligência da Natureza, a da ignorância, da inconsciência, das partes: um organismo é resultado da interacção entre células, sem que o organismo conheça as suas células ou as células o organismo que compõem. A Humanidade é um todo complexo resultado da interacção entre humanos, sem que esta os conheça e sem que estes a conheçam a ela.

Então perguntemo-nos: há seres mais inteligentes que nós? E, para responder, basta imaginarmos um neurónio ou outra célula a perguntar-se o mesmo: há ser mais inteligente que a célula individual, seja ela nervosa ou não? Se sim, sou eu. E o que sou eu? Uma sociedade de células, um eu emergente de uma sociedade extremamente bem organizada de células, que vivem e morrem em gerações, no mundo que é o meu corpo. Então, claro que há algo mais inteligente que nós, se procurarmos para lá de nós mesmos mas não separadamente de nós mesmos: tal como a simples interacção entre células faz emergir um todo que age em conjunto, exercendo cada individualidade a sua função específica, o seu propósito, assim é a humanidade: um sistema complexo, composto por vários subsistemas, não pensado ou planeado por ninguém, mas emergente do contacto entre humanos. Nós somos células de um corpo maior – individualidades que, sem se tocarem necessariamente, trocam informações e produzem um todo não decidido ou planeado.

Compreender a conexão entre todos os níveis da realidade é compreender as bases biológicas, físicas e químicas da nossa complexidade e da nossa subjectividade; é compreender uma sociedade de células e, consequentemente, a nossa própria sociedade, a nossa própria interacção – uma interacção entre cérebros, mentes, consciências, guiados por uma vontade “celular” de expansão. É compreender que não somos apenas cérebros, mas neurónios de um cérebro maior.


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O Livro que pode mudar a forma como vês o mundo e a ti próprio – 17 Citações do Cap. 1 (Eu Sou)

Fragmentos de Verdade não é um livro normal. É, aliás, muito provavelmente um livro diferente, em género, de todos os que leste. Sem história e sem frases no imperativo; sem nada para contar e sem nada para aconselhar. O que resta? Consciência, observação.

Não é um livro de receitas (“Faz isto, não faças aquilo”), que tente influenciar-te a mente, alimentar parte da tua mente, agradar-te ou desagradar-te, mas de ingredientes: que te faz olhar para ti próprio para lá da mente, para lá de ti; um livro sem função que, podendo ter uma função, é permitir-te que te superes, vendo-te, entendendo-te. Nasce do auto-entendimento e, dessa forma, permite o auto-entendimento.

Não deve ser lido por ninguém que queira chegar à última página sem enfrentar fantasmas próprios e sem se aperceber de que, provavelmente, tudo o que pensa está errado – porque está. E não entenderá só isso, mas porque pensa o que pensa! É aí que acontece a elevação, a iluminação: quando entendes a tua própria mente e te separas dela. Quando deixas de ser somente um Homem e vês e entendes o que és por inteiro.

Uma coisa é certa: é impossível chegar ao fim sem a percepção de que algo mudou dentro de ti. Porque a consciência irá inevitavelmente a sítios novos, fora e dentro da tua mente e do teu corpo. E é impossível voltar atrás.

E, portanto, Fragmentos de Verdade deve ser aberto com cautela e com consciência de que, como disse Nietzsche, “Cada um deve decidir a quantidade de verdade que consegue suportar.”

Mas que não se esqueça de outra frase do mesmo autor: “qualquer verdade silenciada transforma-se num veneno”.

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Rafael Augusto – Fragmentos de Verdade (Alêtheia, 2016)

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Das Emoções e dos Sentimentos

Os homens são viciados em querer, são viciados em pensar, são viciados em achar e são viciados em impôr. Mas, antes de tudo, temporal e causalmente, são viciados em sentir.

As emoções são o que temos de inato, a marca dos nossos génes. O que é marcado pelas emoções é variável, as emoções, em si, são universais.

O Homem que pensa e conclui sobre outro Homem ou sobre as coisas não consegue distinguir, dentro de si, a fronteira entre o que esse outro é e o que esse outro o faz sentir: para ele, os seus sentimentos são qualidades desse outro – a sua raiva de uma mulher é essa mulher ser má, o seu amor por uma ideia é essa ideia ser certa, o seu desdém por um objecto é esse objecto ser inútil, o seu enfado por uma acção é essa acção ser enfadonha e o seu riso frente a uma situação é essa acção ser engraçada.

E isto estende-se a todas as ideias de todas as formas, conteúdos e origens: estados afectivos transformados em palavras. Um Homem que odeia outro odiará as suas ideias, um Homem que admira outro imitará a sua forma de pensar. Só quem matou os seus ídolos dentro de si, calou a sua voz e deixou o seu pensamento fluir para além das conclusões temporárias, não se colando a elas, pôde alcançar algum fragmento da verdade. O resto, são só movimentações dentro da dinâmica da Natureza, e vozes entre as regras da vida, em que humanos se movem da mesma forma que bactérias, juntando-se em grupos e em grupos agindo. Sendo, apenas; sentindo, apenas; e transformando o que sentem em pensamentos, argumentos, defesas e ataques. É isso que o Homem comum é: a inteligência que gere a própria vida, por defesas e ataques: toda a sua mente se move no sentido de responder às perguntas implícitas e nunca acessíveis: “como defendo as minhas ideias e a mim?”; “como ataco as ideias que vão contra as minhas e os Homens que vão contra mim?”.

O Homem julga-se diferente dos outros animais, e isso é a maior prova da sua animalidade e da sua cegueira perante si próprio: tanta energia gasta na sua actividade animal de ver só o que vê, que nunca põe em causa o que quer que seja que tenha pressuposto.

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instagram: materiadamente

Quando um Homem grita “Puta que pariu!”, ou “Foda-se!”, não importa minimamente o conteúdo das suas palavras, mas a emoção que expressa. No sítio dessas palavras, podiam estar quaisquer outras, desde que o tom da sua voz e a careta da sua cara fossem aqueles. Quando um Homem ataca alguém que vai contra as suas ideias, também os seus argumentos são só procuras irrelevantes do seu coração. E por isso nenhum soldado muda de lado numa guerra e nenhum intelectual muda de opinião num debate. A sua voz e o seu pensamento são partes de uma arma, não de uma reflexão.

Só pode alcançar o que quer que seja de verdade quem se cala e se afasta. Quem observa sem intervir. Quem cessa de querer. Aí, dissolvem-se os grupos e os conceitos de aliados e inimigos. Deixa de se olhar para os primeiros como alguém com quem se concorda, deixa de se (não) ouvir os segundos como alguém que sempre mente. Pensa-se, imerso na única verdade falável e fiável: a dúvida.

E tudo o resto parecem loucos na sua dança animal, natural e eterna; engrenagens de um relógio inconsciente cujas partes interagem pela vontade sem saber nunca do todo, como células de um corpo que está para além delas, mas com a ilusão da inteligência e da razão.

Mas, Homens: o vosso amor nunca fará da mentira verdade. E o vosso ódio nunca fará da verdade mentira. Se forem causa de alguma coisa, só da vossa cegueira e da sua imposição a quem censuram.

Complexidade pela Simplicidade

“Simplicity is the ultimate Sophistication” – Leonardo da Vinci.

A complexidade de pensamento só é aceitável se buscar a simplicidade. O resto é masturbação mental.

A inteligência pode dirigir-se directa, intuitivamente, às coisas, fundamentando-se o que se vê no raciocínio, fundamentando o raciocínio uma intuição, ou pode afastar-se totalmente das coisas, da realidade e, portanto, do que os factos, ao se apresentarem à frente dos nossos olhos, mostram. A mente é cega, e é muito mais fácil – e comum – ver-se nas coisas a própria vontade do que o que as coisas são. E por isso pensar é normalmente uma guerra: ataca-se uns e defende-se outros, concorda-se com umas coisas e discorda-se de outras. Gosta-se de umas e não de outras: o pensamento é, ele próprio, mesmo nos mais altos níveis da racionalidade, uma expressão de emoções. E pouco ou nada separa as opiniões dos gostos. Mas, embora isto tenha a ver com o que se segue, voltemos à questão da complexidade e da simplicidade…

“White Spiral” by Lazy Photon

Imaginemos um filósofo analítico cuja “especialidade” são as condições de verdade dos condicionais (Se A, B). Por outras palavras, que discute com uma argumentação cada vez mais complexa se uma expressão do género “se o Pedro não fosse fumador, ainda estaria vivo” é, ou pode ser, verdadeira.

Ora, se a forma como ele se vê a si próprio é a de professor, a de reprodutor de ideias, tudo bem. Se ele se vê a si próprio como retórico, como bom analista lógico que consegue facilmente argumentar e detectar contradições e incongruências no discurso do adversário, concordamos. Todo o dito filósofo deve ter uma certa capacidade de raciocínio. Mas se ele se vir como filósofo no sentido de procurar a verdade das coisas, de se aproximar do que é o mundo, o Homem, o universo; se ele achar que as suas palavras e, portanto, as suas ideias, têm algum valor, alguma importância, algum interesse, que estão de alguma forma ligadas a algo profundo, a esse tipo de Homem me dirijo: vocês são espécies de computador que discutem, nem sequer o sexo dos anjos, mas a forma de falar do sexo dos anjos. São advogados divididos que se convencem que uma ideia bem demonstrada é uma ideia verdadeira, que confundem validade com verdade.

Não há nada mais superficial, mais irrelevante, do que esse tipo de conhecimento que, digamos, é baseado na fragmentação, na complexificação desmedida e sem termo. E a fragmentação resulta em que cada teoria tenha mais regras. Um diz que podem ser verdadeiros nestas e naquelas condições, outro diz que nunca podem ser verdadeiros, outro põe condições novas para que o sejam. E, pensemos: estão a falar do quê, realmente? E para chegar onde? Chegarão a uma conclusão? Procuram, sequer, as suas mentes, uma conclusão? Ou procuram ideias? São superficiais porque falam de nada. E isto não é sequer uma crítica, nem sequer acredito que possa o mundo não ter tais “filósofos” e tais “cientistas” – são a maioria de todos os ramos – mas uma constatação. Nenhum desses filósofos entende nada, nenhum desses psicólogos entende nada, nenhum desses seres que deixou de ser criança entende nada. E quando o digo, não é figurativamente. Qualquer António Aleixo, qualquer pessoa atenta ao que o rodeia, qualquer pessoa que cala, que escuta mais do que fala, que deixa a sua mente continuar a navegar sem a travar com uma resposta, seja empregado de balcão, camponês ou empregada de limpeza, compreende as coisas melhor do que um psicólogo cuja psicologia vem da leitura e do que um filosófo cuja filosofia vem da defesa eterna, com novos pormenores, de um ponto de vista alheio. Quem torna a compreensão das coisas uma profissão, quem oito horas por dia lê e escreve sobre as mesmas ideias, defendendo as suas e refutando a dos adversários, não pode se não fazer crescer as raízes e os ramos da sua ignorância. Qualquer pessoa que procure ver com espírito verdadeiramente científico ou filosófico, verá que tais debates não passam de disputas entre adeptos de equipas de futebol, em que uma parte defende que os fenómenos mentais são a mesma coisa que fenómenos físicos – que ter um arrepio (a sensação) é ter um determinado padrão de sinapses entre neurónios – outra defende que são fenómenos de naturezas diferentes embora ligados causalmente, outros defendem que são fenómenos meramente associados e não podemos dizer que a um se segue o outro, outros defendem que os fenómenos físicos são um epifenómeno dos fenómenos mentais.

Aqui, responderia o Peter Griffin melhor que eu (“oh. my. god. who. The hell. cares?”), mas isso quereria dizer que a discussão não é interessante. Mas nem é disso que se trata: a questão, como tantas outras, não é desinteressante, é falsa. São os tais “falsos problemas” de que falou Nietzsche; são problemas que não existem, os quais deve ler qualquer homem que busque naturalmente o conhecimento das coisas como mera masturbação mental, boa para estimular o cérebro como um jogo de xadrez, mas que nunca nos dirá uma coisa que interesse, uma coisa que importe, a resposta a um problema real.

A complexidade que importa? Essa demonstra processos que partem de princípios simples, essa explica a simplicidade. Essa não só parte da simplicidade, mas dela se aproxima. Essa é arte e ciência, como um fractal que, a partir da mesma fórmula de expansão, tem potencialidade infinita.

Porquê? – A partilha de intuições, a ilusão de conhecimento e o silêncio pelo pensamento

Neste dia, em que a névoa cobre a parte que me é visível da terra – a minha rua e pouco mais – e a doença me cobre o corpo, a cor cinzenta de tudo, a neblina parada, parece ter suspendido o tempo, e mesmo o que se mexe, mesmo as pessoas que passam caladas à frente dos meus olhos, parecem mover-se sem intencionalidade, como ponteiros de relógio, movidos pelas engrenagens escondidas e desconhecedoras do tempo, com a automaticidade do que se tornou hábito. E rio-me, como se nós conhecêssemos o tempo – ou a intencionalidade! Não me façam pensar em nada, e saberei que sei tudo, pois tudo não passará do que me parece, tudo será a forma como o sinto. Tirem-me o olho da consciência e serei feliz, suspenso em movimento pelo orvalho cinzento da existência. Perguntem-me o que é isto ou aquilo, o tempo ou o amor, a felicidade ou a miséria, a liberdade ou a cegueira, e só poderei especar-me com a minha própria ignorância, apercebendo-me do quão pouco sabemos, quando a partilha de intuições nos enche o ego de um gás inflamável ao contacto com a luz.

Nada mais somos que cães que, vendo uma coisa da mesma forma, a sua forma canina de ver, não põem em causa o que essa coisa lhes parece – porque todos vêem o mesmo. E, para romper essa máscara de conhecimento, nem o cientista nem o poeta são úteis, porque esses, à sua maneira, explicam cada um o que é o tempo e a saudade, e o resto confia no cientista e revê-se no poeta, ou ignora-o. Aqui, dizia, só podem mostrar-se úteis o idiota e a criança; o que, falando-se no tempo, pergunta simplesmente “O que é o tempo?”; o que, falando-se de amor, pergunta “O que é o amor?”; o que, ouvindo uma multidão em fúria contra um Homem, não se debate, mas antes pergunta simples e curiosamente, tal é a sua idiotice: “porquê?”. E, no dia em que chegar tal idiota, o mundo, de gente que não poderá fazer mais que gaguejar em resposta ou rir da pergunta, só poderá lidar com ele de uma forma: ignorando-o por o considerar louco.

“Geometric Figure” by dzeri29.

Somos enganados pela partilha de sensações idênticas que pôr em causa nunca se torna necessário. E a diferença entre ver-se melhor ou pior não está em ser-se melhor ou pior, em agir de forma diferente. Se dois amigos se encontram e um deles está a fazer uma tese, o outro pergunta sobre o que é, se gosta, se está a correr bem… Na apresentação, avalia-se – mesmo da mesa dos júris – se está a correr bem. Se está nervoso, se se transmite com fluidez e clareza, se se argumenta de forma adequada e válida. No fim, atribui-se uma nota ao aluno.

O que quer isto dizer? Quer dizer que em toda a Humanidade – mesmo no meio científico – o que acontece é uma corrida e uma avaliação pessoais. Não se está, em lado algum, focado em “o que é dito? É concordante com os factos?” – o que não se vê porque se quer ter essa visão, o que impede de ver que não se tem e o que impede de ver o que quer que seja que contrarie a minha crença. Raramente se discute a verdade; discutem-se – seja numa discussão entre namorados, políticos ou cientistas – inconsistências, tons agressivos, meias palavras. Discute-se, assim, a discussão, enquanto o ponto foge e a verdade se passeia sem que ninguém a procure.

Desta forma, o investigador não está – a não ser em raras excepções – a perseguir a ideia, a verdade, a compreensão das coisas, mas o sucesso – a entropia de Alex Wissner-Gross ou a vontade de poder de Nietzsche – obedecendo, mesmo na sua ilusão de racionalidade e de consciência meta-animal, aos princípios a que responde qualquer organismo. No fim, somos animais a lutar por poder, sendo que o que importa para cada um é o que ele próprio conseguiu. Se eu faço uma tese, é quase completamente irrelevante aquilo de que trata, aquilo que eu vejo, o meu contributo para a ciência, e quase omnipresente a minha nota, o meu feito, o meu diploma. É isso que se mostra aos outros, é isso que se partilha, é disso que se fala, sendo raro quem saiba o conteúdo daquelas folhas, em que pode estar o que virá a ser um grande passo no conhecimento humano ou palha. Em ambos os casos é uma tése. Com uma nota. E a diferença passa ao lado de todas as formigas que na grande civilização fazem o seu papel diário de comer, exercer a sua função, descansar frente a uma televisão em que vêem outros animais como elas a fazer coisas variadas, dormem e voltam ao início de um ciclo em que, parecendo paradas, envelhecem.

E tão poucos têm a coragem de encarar o seu verdadeiro comportamento. Afinal, é acreditar a vida inteira que se é racional para a certa altura ver a animalidade do seu pensamento. Mas é assim, agrade ou não à vossa vontade. E a única coisa que cada um pode fazer para limpar a vista é identificar quando está a defender o ego, e conter o seu impulso de defesa, o que é sempre a primeira intuição.

Calar é pensar. E, já que “uma ideia vem quando ela quer, não quando nós queremos” (Nietzsche), tudo o que cada um pode fazer por avanços no próprio pensamento é oferecer a si próprio (e aos que o têm que ouvir) a capacidade do silêncio e da espera por palavras mais sábias que as presentes. Cada palavra que sai da nossa boca deixa-nos amarrados ao que transmite. Se defendo uma posição, a necessidade de consistência forçar-me-á a manter-me nessa posição e impedir-me-á, limitando-me a liberdade mental, de ver para além das minhas convicções. Assim, alargar as vistas é calar o que já vejo e esperar por mais, resistindo à tentação de propagar o que penso saber.

 

Contemplação da Infelicidade

Sentada naquela festa familiar, ela olhava para os tios, um casal de meia idade, por entre o fumo que saía da sua boca e pensava: “são tão infelizes”. Tirando uma ou duas pessoas que irradiavam realmente uma felicidade contagiosa, não considerava ninguém que conhecesse genuinamente feliz, mas apenas gente que passava a vida atrás de um objectivo nunca alcançado, e que se ia habituando a fingir uma felicidade que escondia a desilusão que era encarar o absurdo.

Olhava para os tios e mergulhava na sua expressão. Não percebia porque é que eles tinham casado, naquela cerimónia que presenciara há dez anos e de só guardava imagens curtas e vagas. Tentava lembrar-se de algo que lhe dissesse quão felizes eram na altura, mas não conseguia ver o passado sem ser como a ponte para o presente. Não percebia como é que duas pessoas podem ser felizes, amando-se, e deixarem de ser felizes, odiando-se. Não conseguia construir uma cadeia de situações que levasse a isso e, ao ver nos seus olhares uma tão grande distância, uma tão grande anorexia emocional, sentia pena. Sentia uma profunda tristeza. O mais provável é que seja essa a forma de o corpo se adaptar à infelicidade – não sentindo, levando àqueles casos em que até a capacidade de chorar é sugada pela obrigação de existir.

E há quem fale de livre-arbítrio porque, de facto, eles podiam tão bem ser felizes ou, pelo menos, tinham tantas possibilidades de tentar sair de tão grande desespero que deixou de o ser para ser uma espera distraída! Mas, já ali estavam, não é? E os seus corpos ali continuavam. Mesmo que pensassem onde ir, pensavam continuando no mesmo sítio, a comer à mesma hora, nos mesmos sítios, entre os mesmos percursos de vidas não escolhidas.

Nenhum deles queria a presença do outro, nenhum deles tinha nada para dizer ao outro. Eram parceiros de espaço. É que, mesmo quando nada nos vem à memória, o que está para além da consciência, o corpo, nunca esquece. O corpo, o subconsciente, as paixões e os medos, o que lhes quiserem chamar, que nos comandam sempre, têm omnipresente no seu comportamento o passado. Nunca posso eu, a não ser em caso de doença, olhar para uma pessoa sem a identificar com tudo o que dela sei, intuitivamente. Nunca poderei olhar para a minha mãe sem ver a minha mãe em vez de uma pessoa somente, como vejo outra mãe desconhecida, da mesma maneira que não posso olhar para nada sem me ver projectado, sem o ver através de mim. Olhar o mundo sem ser a partir daquilo que já pensamos sobre ele é como olhar para uma palavra da nossa língua sem a ler: impossível. O corpo não esquece.

Mas como?, perguntava-se ela. Como conjugar esta imagem de pessoas que coexistem num ódio calejado,
num desamor que congela a vida e a tudo tira o paladar e o cheiro, a tudo tira a música? E sem música – sem harmonia, variação e tempo – tudo é necessariamente aborrecido, porque toda a variação do som passará em plano de fundo e nada merecerá atenção. Mas, quando olhava para eles, não via só a infelicidade e o silêncio, nem tentava só lembrar sem sucesso o passado: imaginava os tempos idos, os momentos que só nas suas memórias deviam sobreviver, longínquos. Imaginava aqueles dois, mais jovens, ele com mais cabelo e ela com menos volume, a beijarem-se apaixonadamente, a fazerem amor, a brincarem um com o outro, a chorarem no colo um do outro, a beijarem-se em lágrimas, a adormecerem com o sorriso subtil dos apaixonados. Imaginava-os a amarem-se, a casarem, a planearem ter filhos, a preencherem-se, a andarem ao mesmo passo, com os corações a baterem ao mesmo ritmo; a fazerem promessas, a dizerem todos os dias que se amavam. A dizerem, todos os dias, o quanto queriam partilhar toda a vida com o outro. E os seus sorrisos radiavam ao olhar o novo dia.

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“Wine and Roses”, by Judy Drew (1951)

Hoje estavam ali, parados, lado a lado, como um casal, a sentir a ausência de sabor da vida. Viviam na mesma casa, ouviam a voz um do outro quando algum falava com os filhos ao pé do outro. Trocavam apenas palavras úteis.

Porquê, porra?

E, como escravos das paixões que somos, nada disto seria objecto de pensamento se não houvesse um medo por trás: o medo de se tornar assim. Ela própria amava tanto o namorado, e parecia-lhe tão impossível que passassem àquele estado… Como pode preferir alguém estar sozinho do que com alguém que está já ali? Mesmo que deixem de se desejar como antes, ou o que for, como podem chegar a tal vazio, a tal existência conjunta próxima da de um soldado baleado que se deixa morrer lentamente tentando não pensar? Como pode alguém preferir o silêncio? Não sabia ela que ninguém escolhe o silêncio, como ninguém escolhe nada. O silêncio é como a preguiça, é inércia, é um estado que atrai e em si mantém quem lá está. Ninguém escolhe ser fumador, alcoólico, tímido, feliz ou infeliz. Apercebe-se (ou não). E os felizes – e os que se convencem de que o são, sabendo que não – impõem que a felicidade é uma escolha, que ser feliz é uma decisão. Nunca foram infelizes, ou nunca o quiseram encarar. Não percebem eles que, tal como na felicidade a infelicidade não faz sentido, na infelicidade não faz sentido a felicidade.

Mas como não fala nenhum? Será que não quer, que não consegue ou não lhe surge? Será que à noite, deitados na mesma cama, dizem alguma coisa um ao outro? Será que esperam todos os dias ambos que o outro diga algo? Como terá sido a primeira vez que se beijaram e tocaram? E a última?

Porque e como se chega a isto? O que mata o amor?

Aí, esperou e ouviu o assassino: o silêncio. Mas, para ela, foi só silêncio.