Porquê? – A partilha de intuições, a ilusão de conhecimento e o silêncio pelo pensamento

Neste dia, em que a névoa cobre a parte que me é visível da terra – a minha rua e pouco mais – e a doença me cobre o corpo, a cor cinzenta de tudo, a neblina parada, parece ter suspendido o tempo, e mesmo o que se mexe, mesmo as pessoas que passam caladas à frente dos meus olhos, parecem mover-se sem intencionalidade, como ponteiros de relógio, movidos pelas engrenagens escondidas e desconhecedoras do tempo, com a automaticidade do que se tornou hábito. E rio-me, como se nós conhecêssemos o tempo – ou a intencionalidade! Não me façam pensar em nada, e saberei que sei tudo, pois tudo não passará do que me parece, tudo será a forma como o sinto. Tirem-me o olho da consciência e serei feliz, suspenso em movimento pelo orvalho cinzento da existência. Perguntem-me o que é isto ou aquilo, o tempo ou o amor, a felicidade ou a miséria, a liberdade ou a cegueira, e só poderei especar-me com a minha própria ignorância, apercebendo-me do quão pouco sabemos, quando a partilha de intuições nos enche o ego de um gás inflamável ao contacto com a luz.

Nada mais somos que cães que, vendo uma coisa da mesma forma, a sua forma canina de ver, não põem em causa o que essa coisa lhes parece – porque todos vêem o mesmo. E, para romper essa máscara de conhecimento, nem o cientista nem o poeta são úteis, porque esses, à sua maneira, explicam cada um o que é o tempo e a saudade, e o resto confia no cientista e revê-se no poeta, ou ignora-o. Aqui, dizia, só podem mostrar-se úteis o idiota e a criança; o que, falando-se no tempo, pergunta simplesmente “O que é o tempo?”; o que, falando-se de amor, pergunta “O que é o amor?”; o que, ouvindo uma multidão em fúria contra um Homem, não se debate, mas antes pergunta simples e curiosamente, tal é a sua idiotice: “porquê?”. E, no dia em que chegar tal idiota, o mundo, de gente que não poderá fazer mais que gaguejar em resposta ou rir da pergunta, só poderá lidar com ele de uma forma: ignorando-o por o considerar louco.

“Geometric Figure” by dzeri29.

Somos enganados pela partilha de sensações idênticas que pôr em causa nunca se torna necessário. E a diferença entre ver-se melhor ou pior não está em ser-se melhor ou pior, em agir de forma diferente. Se dois amigos se encontram e um deles está a fazer uma tese, o outro pergunta sobre o que é, se gosta, se está a correr bem… Na apresentação, avalia-se – mesmo da mesa dos júris – se está a correr bem. Se está nervoso, se se transmite com fluidez e clareza, se se argumenta de forma adequada e válida. No fim, atribui-se uma nota ao aluno.

O que quer isto dizer? Quer dizer que em toda a Humanidade – mesmo no meio científico – o que acontece é uma corrida e uma avaliação pessoais. Não se está, em lado algum, focado em “o que é dito? É concordante com os factos?” – o que não se vê porque se quer ter essa visão, o que impede de ver que não se tem e o que impede de ver o que quer que seja que contrarie a minha crença. Raramente se discute a verdade; discutem-se – seja numa discussão entre namorados, políticos ou cientistas – inconsistências, tons agressivos, meias palavras. Discute-se, assim, a discussão, enquanto o ponto foge e a verdade se passeia sem que ninguém a procure.

Desta forma, o investigador não está – a não ser em raras excepções – a perseguir a ideia, a verdade, a compreensão das coisas, mas o sucesso – a entropia de Alex Wissner-Gross ou a vontade de poder de Nietzsche – obedecendo, mesmo na sua ilusão de racionalidade e de consciência meta-animal, aos princípios a que responde qualquer organismo. No fim, somos animais a lutar por poder, sendo que o que importa para cada um é o que ele próprio conseguiu. Se eu faço uma tese, é quase completamente irrelevante aquilo de que trata, aquilo que eu vejo, o meu contributo para a ciência, e quase omnipresente a minha nota, o meu feito, o meu diploma. É isso que se mostra aos outros, é isso que se partilha, é disso que se fala, sendo raro quem saiba o conteúdo daquelas folhas, em que pode estar o que virá a ser um grande passo no conhecimento humano ou palha. Em ambos os casos é uma tése. Com uma nota. E a diferença passa ao lado de todas as formigas que na grande civilização fazem o seu papel diário de comer, exercer a sua função, descansar frente a uma televisão em que vêem outros animais como elas a fazer coisas variadas, dormem e voltam ao início de um ciclo em que, parecendo paradas, envelhecem.

E tão poucos têm a coragem de encarar o seu verdadeiro comportamento. Afinal, é acreditar a vida inteira que se é racional para a certa altura ver a animalidade do seu pensamento. Mas é assim, agrade ou não à vossa vontade. E a única coisa que cada um pode fazer para limpar a vista é identificar quando está a defender o ego, e conter o seu impulso de defesa, o que é sempre a primeira intuição.

Calar é pensar. E, já que “uma ideia vem quando ela quer, não quando nós queremos” (Nietzsche), tudo o que cada um pode fazer por avanços no próprio pensamento é oferecer a si próprio (e aos que o têm que ouvir) a capacidade do silêncio e da espera por palavras mais sábias que as presentes. Cada palavra que sai da nossa boca deixa-nos amarrados ao que transmite. Se defendo uma posição, a necessidade de consistência forçar-me-á a manter-me nessa posição e impedir-me-á, limitando-me a liberdade mental, de ver para além das minhas convicções. Assim, alargar as vistas é calar o que já vejo e esperar por mais, resistindo à tentação de propagar o que penso saber.