Há tempos que a sua cabeça era dominada por demónios que guiavam o seu pensamento pelos caminhos do desespero, da agonia, da indiferença. Por fim, de uma indiferença agoniante: a indiferença que se torna agoniante por ser definitiva, por ser sentida como definitiva.
A agonia de ser indiferente e de sentir indiferença lembrando que um dia se foi diferente e sabendo que não se voltará a ser; a sua indiferença era a incapacidade de sentir que lembra distantemente o quanto sentiu, não o conseguindo repetir e temendo não o voltar a sentir. Na verdade, é o medo a base de qualquer forma que o desinteresse tome. E talvez se possa dizer que Fiodór só é incapaz de sentir, não porque já sentiu tudo, não porque a repetição de tudo o habituou e tudo tornou desprovido de interesse, mas porque o medo lhe construiu um muro, que impede o olhar as coisas pela omnipresença do medo de não conseguir olhar as coisas novamente. Desta forma, cada vez que uma coisa se dispunha a ser olhada, a cor do medo pintava-a. E essa cor, esse tom que embebia o seu olhar, não era algo como “esta coisa não importa”, “esta coisa tanto faz”, “esta coisa é uma repetição”; isso é apenas a forma adoptada por algo mais profundo. O tom de que o seu cérebro cobria automaticamente a situação, a origem dessas formas que tomava a intuição incial, era o tom do medo. Quando via uma criança a correr feliz, a sua atenção estava focada, não na criança, mas na sua percepção da criança: era o medo de não se focar na criança que o fazia focar-se na questão “sinto a criança?” e não na criança. E assim para tudo.
Mas basta pensarmos: desinteresse real seria não pensar. Não pode ser de outra forma: desinteressante é algo em que não vale a pena pensar, como as palavras de um professor para um aluno. E não estou a apontar uma contradição, porque o Homem não é se não contradição e assim deve ser. Estou a dizer que, uma pessoa sentir verdadeiro desinteresse seria não pensar em nada. Neste caso, o que há é um desinteresse pelas coisas resultante de um interesse obstinado em si. Uma paranoia, uma obsessão-compulsão, uma depressão, uma ansiedade… O que lhe quiserem chamar, que eu não entendo bem a diferença. Assim, o retrato de Fiodór, o retrato do verdadeiro niilista, do niilista que a certo ponto prefere a morte à vida, é o de alguém em que um estado de consciência invadido pelo medo fá-lo pensar constante, obsessivamente a partir desse medo. O seu desinteresse é só uma forma de um medo, uma forma que o faz estar constantemente concentrado em si.
Se estivermos na selva e virmos um leão a passar, o que faz o medo de que somos possuídos é focar o leão, a ideia do leão. E pensamos obstinadamente sobre o leão, sobre onde estará, sobre como fugir se ele vier. O medo do leão acciona o raciocínio – aquilo a que damos esse nome – que é dizer, por outras palavras, que toda a nossa atenção se foca nessa ideia enquanto surgem pensamentos relacionados com ela, sob a orientação da “cor emocional” do pensamento, que pode ser vista como o que é indicado pela expressão que toma o corpo e as faces – pela linguagem corporal. Se disser com os olhos arregalados, baixinho e a tremer notoriamente: “passou um leão”, aquilo que compreendemos de imediato como medo será a cor da ideia expressa, que com uma cor será interpretada pelo ouvinte. Se eu digo isso com medo, o outro ficará com medo. O que faz o pensamento em qualquer forma de “doença mental” que possa ser sintoma de genialidade ou ter a genialidade como sintoma, é o mesmo: o “eu ter medo” torna-se o objecto do medo, torna-se o leão, até que a atenção está constantemente focada em si própria. O que causa o afastamento é a atenção estar focada em si própria – não vendo com clareza porque comandada pelo medo, que não faz se não aumentar – estar focada não na coisa vista, mas no acto de ver, não na coisa sentida, mas no acto de sentir, com a cor do medo de não ver ou não sentir.
Assim, mesmo aquela que parece ser uma forma de abandono do ego é egocêntrica: um animal cujo cérebro, usando o medo como defesa, se cobre de tal forma desse medo que todo o cheiro, todo o som, toda a imagem, memória ou imaginação, tem o seu paladar, o seu odor, a sua variação de cores, o seu comprimento de onda. A sua inteligência, associativa, liga tudo àquele medo. E como fugir de algo para o qual tudo leva? Como podia Fiodór fugir do medo se tudo para que olhava lhe trazia o medo, bloqueando-lhe os sentidos? Como pode alguém esquecer algo ao qual associa tudo? Não pode, pelo menos por escolha própria.
Este artigo é um excerto do livro @fragmentosdeverdade. Gostaste? Partilha os teus pensamentos sobre o tema nos comentários e diz-me sobre o que gostarias que falasse futuramente.
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