A Depressão de Dostoiévski: uma análise da mente doente

Há tempos que a sua cabeça era dominada por demónios que guiavam o seu pensamento pelos caminhos do desespero, da agonia, da indiferença. Por fim, de uma indiferença agoniante: a indiferença que se torna agoniante por ser definitiva, por ser sentida como definitiva.

depression
Artwork by Robert Carter

A agonia de ser indiferente e de sentir indiferença lembrando que um dia se foi diferente e sabendo que não se voltará a ser; a sua indiferença era a incapacidade de sentir que lembra distantemente o quanto sentiu, não o conseguindo repetir e temendo não o voltar a sentir. Na verdade, é o medo a base de qualquer forma que o desinteresse tome. E talvez se possa dizer que Fiodór só é incapaz de sentir, não porque já sentiu tudo, não porque a repetição de tudo o habituou e tudo tornou desprovido de interesse, mas porque o medo lhe construiu um muro, que impede o olhar as coisas pela omnipresença do medo de não conseguir olhar as coisas novamente. Desta forma, cada vez que uma coisa se dispunha a ser olhada, a cor do medo pintava-a. E essa cor, esse tom que embebia o seu olhar, não era algo como “esta coisa não importa”, “esta coisa tanto faz”, “esta coisa é uma repetição”; isso é apenas a forma adoptada por algo mais profundo. O tom de que o seu cérebro cobria automaticamente a situação, a origem dessas formas que tomava a intuição incial, era o tom do medo. Quando via uma criança a correr feliz, a sua atenção estava focada, não na criança, mas na sua percepção da criança: era o medo de não se focar na criança que o fazia focar-se na questão “sinto a criança?” e não na criança. E assim para tudo.

Mas basta pensarmos: desinteresse real seria não pensar. Não pode ser de outra forma: desinteressante é algo em que não vale a pena pensar, como as palavras de um professor para um aluno. E não estou a apontar uma contradição, porque o Homem não é se não contradição e assim deve ser. Estou a dizer que, uma pessoa sentir verdadeiro desinteresse seria não pensar em nada. Neste caso, o que há é um desinteresse pelas coisas resultante de um interesse obstinado em si. Uma paranoia, uma obsessão-compulsão, uma depressão, uma ansiedade… O que lhe quiserem chamar, que eu não entendo bem a diferença. Assim, o retrato de Fiodór, o retrato do verdadeiro niilista, do niilista que a certo ponto prefere a morte à vida, é o de alguém em que um estado de consciência invadido pelo medo fá-lo pensar constante, obsessivamente a partir desse medo. O seu desinteresse é só uma forma de um medo, uma forma que o faz estar constantemente concentrado em si.

Se estivermos na selva e virmos um leão a passar, o que faz o medo de que somos possuídos é focar o leão, a ideia do leão. E pensamos obstinadamente sobre o leão, sobre onde estará, sobre como fugir se ele vier. O medo do leão acciona o raciocínio – aquilo a que damos esse nome – que é dizer, por outras palavras, que toda a nossa atenção se foca nessa ideia enquanto surgem pensamentos relacionados com ela, sob a orientação da “cor emocional” do pensamento, que pode ser vista como o que é indicado pela expressão que toma o corpo e as faces – pela linguagem corporal. Se disser com os olhos arregalados, baixinho e a tremer notoriamente: “passou um leão”, aquilo que compreendemos de imediato como medo será a cor da ideia expressa, que com uma cor será interpretada pelo ouvinte. Se eu digo isso com medo, o outro ficará com medo. O que faz o pensamento em qualquer forma de “doença mental” que possa ser sintoma de genialidade ou ter a genialidade como sintoma, é o mesmo: o “eu ter medo” torna-se o objecto do medo, torna-se o leão, até que a atenção está constantemente focada em si própria. O que causa o afastamento é a atenção estar focada em si própria – não vendo com clareza porque comandada pelo medo, que não faz se não aumentar – estar focada não na coisa vista, mas no acto de ver, não na coisa sentida, mas no acto de sentir, com a cor do medo de não ver ou não sentir.

Assim, mesmo aquela que parece ser uma forma de abandono do ego é egocêntrica: um animal cujo cérebro, usando o medo como defesa, se cobre de tal forma desse medo que todo o cheiro, todo o som, toda a imagem, memória ou imaginação, tem o seu paladar, o seu odor, a sua variação de cores, o seu comprimento de onda. A sua inteligência, associativa, liga tudo àquele medo. E como fugir de algo para o qual tudo leva? Como podia Fiodór fugir do medo se tudo para que olhava lhe trazia o medo, bloqueando-lhe os sentidos? Como pode alguém esquecer algo ao qual associa tudo? Não pode, pelo menos por escolha própria.


Este artigo é um excerto do livro @fragmentosdeverdade. Gostaste? Partilha os teus pensamentos sobre o tema nos comentários e diz-me sobre o que gostarias que falasse futuramente.

Segue @laugoddog nas redes sociais e clica aqui para outros conteúdos.

 

Da célula à Sociedade: O Problema Corpo-Mente, a Inteligência e os Níveis de Realidade

O Homem, na tentativa de imitar o cérebro, criou o computador – formado por disposições, que o fazem agir da forma X no caso do estimulo Y (o que é a base perceptível da mente). Ora, comecemos na célula.

brain machine.jpg

A célula é organismo vivo mais pequeno, sendo todo o organismo maior um conjunto de células que partilham o mesmo código genético. Passando milhões de anos de uma evolução muito lenta em relação à nossa vida invidual, uma das coisas que a caracteriza é ser sempre uma interacção cada vez mais complexa entre células individuais, cada uma dela programada com disposições, para dar um output a um determinado input, e cada uma delas munida de vontade – a expressão dessa resposta.

Os computadores não se reproduzem, mas re-produzem-se (produzem-se de um ponto de partida sempre actualizado) porque o homem nao se reproduz só biologicamente, mas mentalmente, partindo cada ser de uma memória colectiva e sendo as inovações feitas a partir das inovações anteriores – permitindo a linguagem uma evolução não biológica. Mas há uma diferença: a natureza não pensa, e é esse não-pensamento que caracteriza a evolução – aquilo a que Dawkins chamou “the blind watchmaker“: sendo cada organismo uma possibilidade aleatória de adaptação a um certo ambiente, ou se reproduz por sobreviver, espalhando o seu código genético, e morre, ou não resulta e morre. Ao longo de milhões de anos, uma regra forma conjuntos de células que agem em conjuntos cada vez mais complexos, organizadas em vários sistemas que desempenham diversas funções: sistema digestivo, respiratório, cardiovascular, nervoso. E o corpo existe à imagem da célula: as células do sistema nervoso têm uma função idêntica à do núcleo da célula: gerir e controlar percepcionando o ambiente de alguma forma. O cérebro fá-lo através dos sentidos, numa cabeça com orelhas, olhos, nariz, boca e um centro que interpreta e organiza os sinais (o cérebro e os seus diversos sistemas).

Desta interacção cada vez mais complexa entre células com vontade, emerge em primeiro lugar uma mente que tem representações mentais de como agir – imagens mentais que expressam propensões, resultados de regras abstractas marcadas por emoções e sentimentos, por sentir.

Assim, as nossas emoções e sentimentos são as versões mais avançadas até ao momento da homeostase – gestão da vida – presente em qualquer célula e resultado da interacção entre elas: a vontade comum de muitas células em constante interacção. Daí emerge uma mente (imagens mentais), que partilhamos com muitos outros animais, um Eu (que partilhamos com alguns) e uma consciência. Agora vejamos: o que são essas vozes conjuntas de que é expressão qualquer fenómeno mental? O eu sou eu, que estou a escrever, tu, que estás ai a ler? A consciência és tu, que sabes que estas ai a ler, e eu, que sei que estou aqui a escrever. A mente, todas as as imagens e pensamentos. E não só imagens visuais, mas qualquer dor, sentimento ou sensação. E sendo isto tudo variações do sentir, podemos dizer que a célula sente, e a interacção simples entre milhões de células, ou o produto da interacção que forma unidades muito complexas, composta por sistemas muito especializados e desenvolvidos, sente (mentalmente), é (tendo uma perspectiva, um Eu) e sabe que sente e que é.

Mas o que há a reparar, em questão de perspectiva, é que nenhuma célula sabe da minha existência enquanto Eu, ou mente, ou consciência, tal como eu não sei da existência da vontade da célula singular. É claro que a posso deduzir ao fim de milhares de anos de pensamento e investigação, mas a experiência mental do organismo ignora aquilo de que resulta, como qualquer perspectiva: é e, eventualmente, sabe que é, agindo de determinada maneira, ainda guiado, e para sempre, pelos mecanismos de gestão da vida, que nos aproximam do que a evolução aprendeu que era bom e nos afastam do que a evolução aprendeu que era mau, seja através de bons ou maus cheiros, de boas ou mas opiniões, de boas ou mas músicas, do aborrecimento, do receio, do amor ou da repugnância.

O que está guardado das disposições dos nossos cérebros não é o objecto, mas guias disposicionais que relacionam objecto, ambiente e eu. Não estava no meu cérebro a pessoa que amo, estava no meu cérebro a disposição para amar alguém em determinadas circunstâncias. Ou seja, vários factores – um incalculável conjunto conjuntivo e disjuntivo de factores exteriores, interiores e multidimensionais – contribuem para tudo o que se passa no meu cérebro, e portanto na minha mente, a um dado momento.

Prestem, por um segundo, atenção às capacidades do vosso corpo: pensa, sente, mexe-se, recicla alimentos, tirando deles energia e deitando fora o desperdício, retira oxigénio do ar envolvente, espalha-o através do sangue bombeado pelo coração; tem ossos que mantêm uma estrutura, músculos que a movem e pele que os protege. Tem órgãos! Tudo isso que tu és é um aglomerado de órgãos tão complexo que se tornou auto-consciente, mas só parcialmente. Um aglomerado de órgãos que é uma actividade entre células.

E o que é a sociedade se não um nível acima, se não um aglomerado de órgãos que é uma actividade entre Homens? No teu corpo, células morrem e reproduzem-se. Hoje não és as mesmas células que eras há dez anos – tirando os neurónios e as células da retina, que são sempre os mesmos. E isso não te mudou a identidade. Também Portugal é “o mesmo país” de há duzentos anos, sem nenhuma pessoa viva ser a mesma. E é esta a inteligência da Natureza, a da ignorância, da inconsciência, das partes: um organismo é resultado da interacção entre células, sem que o organismo conheça as suas células ou as células o organismo que compõem. A Humanidade é um todo complexo resultado da interacção entre humanos, sem que esta os conheça e sem que estes a conheçam a ela.

Então perguntemo-nos: há seres mais inteligentes que nós? E, para responder, basta imaginarmos um neurónio ou outra célula a perguntar-se o mesmo: há ser mais inteligente que a célula individual, seja ela nervosa ou não? Se sim, sou eu. E o que sou eu? Uma sociedade de células, um eu emergente de uma sociedade extremamente bem organizada de células, que vivem e morrem em gerações, no mundo que é o meu corpo. Então, claro que há algo mais inteligente que nós, se procurarmos para lá de nós mesmos mas não separadamente de nós mesmos: tal como a simples interacção entre células faz emergir um todo que age em conjunto, exercendo cada individualidade a sua função específica, o seu propósito, assim é a humanidade: um sistema complexo, composto por vários subsistemas, não pensado ou planeado por ninguém, mas emergente do contacto entre humanos. Nós somos células de um corpo maior – individualidades que, sem se tocarem necessariamente, trocam informações e produzem um todo não decidido ou planeado.

Compreender a conexão entre todos os níveis da realidade é compreender as bases biológicas, físicas e químicas da nossa complexidade e da nossa subjectividade; é compreender uma sociedade de células e, consequentemente, a nossa própria sociedade, a nossa própria interacção – uma interacção entre cérebros, mentes, consciências, guiados por uma vontade “celular” de expansão. É compreender que não somos apenas cérebros, mas neurónios de um cérebro maior.


Este artigo é um excerto do livro @fragmentosdeverdade. Gostaste? Partilha os teus pensamentos sobre o tema nos comentários e diz-me sobre o que gostarias que falasse futuramente.

Segue @laugoddog nas redes sociais e clica aqui para outros conteúdos.